O Projeto de Lei (PL) 2630/2020, batizado de PL das Fake News, divide opiniões no Congresso e na sociedade civil. Um dos temas mais importantes em debate no Parlamento, que também movimenta discussões em vários países, é responsabilizar plataformas como Google, Facebook e TikTok pela disseminação de conteúdo criminoso, que estimulem rompimento da ordem democrática ou mesmo a violência contra mulheres e crianças.
Discute-se, entre outros pontos, a regulação dos provedores, se deve existir uma entidade fiscalizadora, se a imunidade parlamentar vale para as redes e se as big techs devem pagar direitos autorais e remunerar empresas jornalísticas e artistas.
A Câmara dos Deputados deve votar nesta semana um projeto de lei que assegura o pagamento de direito autoral a artistas a partir da divulgação de conteúdo pelas plataformas digitais. Líderes dos partidos negociam ainda a inclusão da remuneração também a veículos da imprensa.
Os dois temas já eram tratados no PL das Fake News. Diante da resistência de boa parte dos deputados em votar a versão integral do PL, as lideranças colocaram na mesa de negociação o “fatiamento” para votar separadamente a remuneração a artistas e à imprensa.
Nos últimos dias, o Estadão ouviu deputados, especialistas e empresas sobre o tema. A seguir, confira ponto a ponto o que pensam o governo, a oposição, as big techs e a coalizão do setor de comunicação, união de entidades que representam empresas de rádio, televisão, jornais, internet, publicidade e agências de comunicação. Entre essas entidades está a Associação Nacional de Jornais (ANJ), da qual o Estadão faz parte.
As big techs devem ou não ter regulação?
Governo: A favor da regulação. O resgate do PL das Fake News partiu justamente do governo, que cita a tentativa de golpe no 8 de janeiro, em Brasília, e os ataques nas escolas como justificativa para aprovação da proposta.
Oposição: Parte da oposição, mais ligada ao ex-presidente Jair Bolsonaro, se diz contra qualquer regulação, que enxerga como censura. No entanto, uma outra parte defende uma regulação “mais branda” e, por isso, apoia um texto alternativo elaborado pelo deputado Mendonça Filho (União-PE).
Big techs: Afirmam apoiar os objetivos do PL das Fake News, mas são fortemente contra o atual texto sob a alegação de que não teriam como instaurar um modelo de vigilância do conteúdo. Querem adiar a votação do projeto, alegando que é necessário mais debates.
Coalizão do setor de comunicação: Defende que o País precisa avançar na regulação das plataformas, com o principal objetivo de combater a disseminação de notícias falsas. De acordo com a coalizão do setor, pelo menos 55 países já aplicam controles no uso da internet.
Especialista: Professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da USP, Diogo Coutinho apoia a regulação, mas pondera que não houve o devido debate necessário. “O PL cria um regime regulatório por boas razões, algo que se tornou premente e necessário hoje”, diz. Para o advogado constitucionalista André Marsiglia, membro da Comissão de Liberdade de Imprensa da OAB-SP e da 4ª câmara de julgamento do Conselho de Ética do Conar, a intenção em regular é válida. Ele considera, porém, haver uma responsabilização excessiva nas novas regras.
Redes sociais podem ser responsabilizados por conteúdos ilegais publicados nas plataformas?
O PL das Fake News prevê que as plataformas também sejam responsabilizadas civilmente por “conteúdos ilegais gerados por terceiros que possam configurar crimes” – como racismo, terrorismo, ataque contra a democracia e crimes contra crianças e adolescentes. Isso poderá ocorrer em casos de mensagens patrocinadas ou quando houver descumprimento das obrigações do chamado “dever de cuidado”. Hoje, o Marco Civil da Internet isenta as big techs dessa responsabilização.
Governo: Diz ser fundamental “punir quem comete crimes e aqueles que permitem que os crimes sejam cometidos”, conforme declarou o líder do PT na Câmara, Zeca Dirceu.
Oposição: Aponta para uma “responsabilidade abusiva” e diz que isso vai cercear a liberdade de expressão. O texto de Mendonça Filho prevê a responsabilização das plataformas desde que tenham sido notificadas anteriormente pelo Ministério Público.
Big techs: Alegam que as redes sociais passariam a ter poder de polícia para retirar os conteúdos da internet, o que poderia resultar em uma nova forma de censura. “A incerteza sobre o que pode ou não ser disponibilizado na internet poderia levar as empresas a restringir a quantidade de informações disponíveis, reduzindo a representatividade de vozes que existem nas plataformas”, afirma o Google, em nota enviada ao Estadão.
Coalizão do setor de comunicação: Defende que as redes sociais devem ter a mesma responsabilidade que os veículos de imprensa. “Entendemos que toda e qualquer empresa deve ter responsabilidade pela forma que ela faz dinheiro”, diz o presidente da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), Marcelo Rech.
Especialista: O professor Diogo Coutinho afirma que as plataformas não podem ser desvinculadas dos crimes que ali ocorrem. “As redes sociais precisariam resistir muito e ter má-fé com a notícia falsa ou criminosa para serem penalizadas, pois o texto prevê camadas de responsabilização.”
Fiscalização: quem deve ter o poder de retirar conteúdo?
Inicialmente, o texto do deputado Orlando Silva previa a criação de um órgão governamental para supervisionar a atuação das redes sociais. A futura entidade, antes mesmo de ser criada, logo recebeu um apelido: foi batizada pela oposição de Ministério da Verdade. Sem apoio, o parlamentar retirou o trecho do relatório e, agora, teme-se o vácuo deixado. O texto mais recente estabelece que as diretrizes deverão ser definidas pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI). Mas quem vai regular ou fiscalizar não está definido.
Governo: Para o relator da proposta, deputado Orlando Silva, a melhor alternativa é que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) fiscalize a lei. A tarefa também poderá ficar a cargo da Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD). O governo não se manifestou sobre as propostas.
Oposição: Afirma que as redes sociais devem se autorregular e que a Justiça poderá intervir, desde que seja cumprido o devido processo legal
Big techs: Também defendem a autorregulação, assim como ocorre atualmente. Em síntese, as plataformas devem remover conteúdos que violem suas políticas e cabe ao Judiciário arbitrar sobre casos em que há discussão sobre a legalidade.
Coalizão do setor de comunicação: Acredita que o melhor modelo seria da autorregulação do setor sem ingerência do governo no monitoramento das redes sociais e plataformas.
Especialista: Para o professor Coutinho, a não definição de um órgão regulador já no projeto de lei poderá abrir margem, futuramente, para questionamentos e desobediências por parte das redes sociais, o que resultaria também em insegurança jurídica.
Extensão da imunidade parlamentar vale para as redes?
O PL das Fake News considera perfis de políticos com mandato, ministros e secretários como contas de interesse público. A imunidade parlamentar deverá, segundo o texto do projeto, se estender aos conteúdos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem privada.
Governo: Apoia a extensão da imunidade parlamentar
Oposição: Apoia a extensão da imunidade parlamentar
Big techs: Em nota, o Google explica que essa discussão cabe à reflexão dos parlamentares e da sociedade
Coalizão do setor de comunicação: Não comenta
Especialista: Para o advogado André Marsiglia a imunidade parlamentar já deve ser interpretada como estendida. “Ou seja, o congressista pode defender a ideia em qualquer lugar, inclusive nas redes sociais. Então acho justo que isso seja interpretado de uma forma ampla, conforme prevê o projeto”, diz. Ele pondera que isso não significa que o deputado estará imune a ser responsabilizado por crimes, conforme a legislação atual.
Direito autoral e remuneração a empresas jornalísticas: como deve funcionar?
O PL das Fake News discute também o pagamento de direitos autorais pelas plataformas digitais e a remuneração a empresas jornalísticas por conteúdos distribuídos pelas big techs. Lideranças partidárias decidiram retirar esses dois tópicos para serem tratados em um outro projeto de lei, o PL 2370/2019, da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ). Os deputados devem votar nesta semana a urgência do projeto.
Governo: Trabalha para favorecer artistas e se diz a favor do pagamento de direitos autorais.
Oposição: Afirma que a medida vai acabar punindo o consumidor. “A consequência será o encarecimento dos serviços de impulsionamento de conteúdos e até mesmo uma possível fuga de investimentos”, diz o deputado Rodrigo Valadares (União Brasil-SE). O partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, o PL, também se opõe à proposta.
Big techs: Dizem que o atual texto desestimula a parceria entre os veículos e as redes sociais (por meio da qual as big techs lançam projetos com orçamento definido e abrem editais ou convidam veículos específicos). O Google afirmou que o PL 2630 prejudica as licenças de direitos autorais para hospedar vídeos ao obrigar que elas sejam pagas sem identificar os destinatários ou os motivos de pagamento. “Nesse sentido, as plataformas não poderiam mais oferecer serviços gratuitos de hospedagem ou compartilhamento de conteúdo sem pagar quem deseja usar seus produtos. Isso significa que poderá deixar de ser viável financeiramente para as plataformas oferecerem serviços gratuitos”, afirma.
Coalizão do setor de comunicação: Defende que o jornalismo seja remunerado pelas redes sociais. Para o setor, “um jornalismo saudável, com vigor financeiro e independente, é fundamental para o combate à desinformação”. Segundo a coalizão, centenas de acordos de remuneração estão sendo fechados em outras democracias com a intenção de proteger a cultura local, a informação plural e verdadeira, além do direito de cada cidadão ter informações verídicas para fazer suas próprias escolhas. Na União Europeia, 23 dos 27 países-membros já adotam sistemas de remuneração, e o Canadá deve aprovar sua lei neste semestre. A ANJ apoia o atual texto do relator Orlando Silva. “Esse projeto tem muita elasticidade, prevê que até microempreendedores individuais sejam remunerados”, diz Rech.
Especialista: O advogado Marsiglia diz que é a favor do pagamento de direitos autorais e da remuneração a empresas jornalísticas, mas não da forma como estão sendo tratados. “O texto deixa muitas brechas”, avalia.
Publicado em Estadão.