Juíza escreve #AglomeraBrasil, faz piada com coronavírus e advogado aciona CNJ
Há limites para a liberdade de expressão de magistrados nas redes sociais? Especialistas discutem se CNJ pode atuar no caso
Por Clara Cerioni no JOTA
Durante o feriado de ano novo, a juíza Ludmila Lins Grilo, da Vara Criminal e da Infância e da Juventude de Unaí, em Minas Gerais, fez uma série de publicações em seu perfil no Twitter, que reúne mais de 136 mil seguidores, com críticas e piadas envolvendo as medidas de segurança adotadas pelo poder público para conter a propagação do coronavírus nas festas de final de ano.
Na virada de 30 de dezembro para 1º de janeiro, a magistrada divulgou um vídeo de fogos de artifício vistos de uma praia com os dizeres “Feliz Ano Novo!”, seguido pela hashtag #AglomeraBrasil. O termo foi utilizado por diversos perfis brasileiros neste período com o intuito de incentivar celebrações com grande participação de público, apesar do avanço da doença, que ultrapassou as 196 mil vítimas durante o feriado.
No mesmo dia, Grilo também compartilhou um vídeo que mostra uma rua pública de Búzios, no Rio de Janeiro, lotada. No post, a juíza comentou: “Rua das Pedras, em Búzios/RJ, agora à noite. Uma cidade que resiste à estupidez”. Na publicação seguinte, ela acrescentou: “Uma cidade que não se entregou docilmente ao medo, histeria ou depressão. Aqui, a vida continua. Foi maravilhoso passar meu réveillon nessa vibe”.
Neste domingo (3/1), em nova postagem, a juíza compartilhou uma foto de si mesma no que disse ser uma pizzaria. Na legenda da foto, Grilo escreveu: “Parei pra comer uma pizza aqui, rapidão. Pizzaria tá cheia, mas não se preocupem: como eu já estou sentada, o vírus passa por cima”. Até esta segunda-feira (4/1), as quatro publicações já haviam alcançado mais 170 mil perfis no Twitter.
Os posicionamentos da magistrada reverberaram nas redes sociais e chegaram até o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
No último sábado (2/1), o advogado José Belga Assis Trad ingressou no CNJ com um pedido de apuração de infração disciplinar contra Grilo. No documento, o advogado diz que “ao se manifestar contra as recomendações das autoridades sanitárias, embora não tenha formação e não seja médica sanitarista, o público que tem acesso ao conteúdo das postagens da doutora Ludmila Lins Grilo passa a confundir a opinião, infundada, da magistrada com a da magistratura”.
Ao JOTA, Trad disse que o principal argumento para entrar com o pedido é o de que as manifestações da magistrada contrariam e contradizem recomendações do próprio CNJ em relação às medidas de distanciamento e segurança. “O CNJ adotou uma série de medidas, de forma a ‘evitar o fluxo de pessoas’ nos fóruns, além de disciplinar que as unidades judiciárias deveriam zelar pela observância dos órgãos de saúde, especialmente o distanciamento mínimo de 1,5 m entre os presentes”, disse.
O advogado citou também o artigo 3, I, b, da Resolução CNJ 305/2019, que estabelece os parâmetros para o uso das redes sociais pelos membros do Poder Judiciário, diz que os magistrados devem “observar que a moderação, o decoro e a conduta respeitosa devem orientar todas as formas de atuação nas redes sociais”.
“Eu penso que ela não foi moderada, tampouco guardou o decoro e o respeito aos doentes, às vítimas e aos familiares, ao incentivar e exaltar aglomerações, em um momento em que a epidemia está em franco crescimento. Tampouco foi respeitosa com o Judiciário, que desde o início da pandemia não está funcionando com a sua plena capacidade, em prejuízo até da atividade jurisdicional, justamente para seguir as recomendações sanitárias de distanciamento”, afirmou.
Uso das redes por membros do Poder Judiciário
A questão envolvendo os limites para o uso de redes sociais por membros do Poder Judiciário, que têm como ofício do cargo julgar casos concretos, ainda é complexa e não encontrou uma saída pacífica, segundo avaliaram especialistas consultados pelo JOTA.
No entendimento de André Marsiglia, advogado constitucionalista especializado em liberdade de expressão, sócio do Lourival J Santos Advogados e idealizador da L+ Speech/Press, é uma prática inconstitucional tentar fazer com que o CNJ intervenha nas publicações de magistrados, por piores que sejam as manifestações.
“É inconstitucional porque viola as normas da Constituição Federal que protegem a liberdade de expressão de todos nós. Se uma empresa, por exemplo, decide redigir um código de conduta de colaboradores impedindo que se expressem nas redes sociais sobre determinados assuntos, o código será inconstitucional, porque fere a liberdade de expressão. O mesmo ocorre quando o CNJ decide regular as opiniões pessoais dos magistrados”, afirmou.
De acordo com o advogado, o artigo 36, III, da lei que regula a magistratura (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) deixa claro que o juiz não pode se manifestar sobre seus processos ou de colegas. Impede, ainda, que os juízes se envolvam em política partidária. No entanto, “não impede, e nem poderia impedir, que o juiz tenha opiniões e as manifeste”, disse, acrescentando que a “liberdade de expressão serve justamente para proteger as opiniões controversas, as que nos desagradam. As que nos agradam já estão protegidas pelo consenso”.
Em relação à resolução do CNJ que dispõe sobre as redes sociais, Marsiglia disse que a parte em que a resolução inova e trata, na seção I, das redes sociais e das opiniões pessoais dos magistrados, ela “tem o cuidado de não falar em vedação, mas em recomendação, e usa nos artigos o termo ‘evitar’. Ou seja, não obriga”. Para ele, apesar disso, a norma é “suficiente para ser constrangedora aos juízes, pois mesmo tendo natureza de orientação, trata o magistrado de forma infantil, como se precisasse ser tutelado”, finalizou.
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