Concordo que a democracia não é feita de prédios modernistas ou cadeiras enfileiradas em um auditório, mas de valores que, mesmo quando depredados, não quebram. No entanto, ao contrário do que pensam as autoridades, não é por serem rígidos e inabaláveis que os valores não quebram, mas por serem flexíveis: envergam e retornam sempre ao lugar.
Exatamente por isso, é triste acreditar que os ataques do dia 8 de janeiro foram capazes de assustar tanto e causar uma comoção institucional que dura até hoje. Quando o Código Penal prescreve: “Matar alguém: pena – reclusão, de seis a vinte anos”, está pressupondo que o assassinato não apavore nosso sistema. Quando um assassinato é cometido, lamenta-se, mas o Estado não é posto em alerta. Com a mesma naturalidade deveríamos tratar os baderneiros. Se um assassinato não ameaça o Estado, pois, por pior que seja, lidar com ele está contido no sistema, ataques contra símbolos do Estado, pela mesma razão, não deveriam causar o alvoroço amedrontado que causaram no país.
A democracia nunca esteve em risco, mas o pânico geral é um sintoma e tanto. Este sintoma parece nos trazer a verdadeira e angustiante questão que, até o momento, permanece oculta. Sabemos bem o que fazer com radicais – o Direito está aí firme e forte para isso – não sabemos o que fazer é com nosso medo e insegurança. O pavor chegou num tal ponto, que o Estado atualmente parece não querer apenas punir atos ilícitos de radicais, mas impedir que outros crimes sejam cogitados, nos enfiando goela abaixo um regime de vigilância permanente e um Judiciário policialesco, completamente incompatíveis com os valores da democracia que, paradoxalmente, se pretende preservar.
Temos assistido a uma gradativa e muito preocupante relativização das liberdades de expressão, um número cada vez maior de decisões judiciais imprudentes e todo um arsenal de ações e reações governamentais afobadas. A maturidade de uma democracia é posta à prova justamente na reação do Estado às intempéries. Neste momento, mostramos se somos tóxicos ou maduros em relação a quem nos ataca.
Se tivéssemos um pouco de tranquilidade, além de lidarmos melhor com os radicais, poderíamos nos conectar com uma corajosa pergunta, digna daqueles que se arrojam a deitar num divã e questionar a própria vida: em um país desigual, polarizado e fragmentado como o nosso, quais são ainda os valores que juntos somos capazes de preservar e que fazem com que nos sintamos todos em uma democracia?
Quem sabe no nosso medo e insegurança não se descubra culpa por achatarmos tantos miseráveis, enquanto tão poucos vivem bem? Quem sabe na ferocidade de nossos juízes e governantes exista um meganha autoritário enrustido? Se enfrentarmos nossos fantasmas, agiremos de forma mais madura quando radicais voltarem a nos atacar.
Publicado na revista Crusoé.