Discursos de palanque extrapolam, e muito, a função judicial e colocam ministros da Corte como atores políticos, escreve André Marsiglia
Apesar de o Brasil ser um país moralmente torto, é preciso reconhecer que estabelecemos alguns traços formidáveis de igualdade. Um deles é o de que nunca conseguimos matar a fome de ninguém. Nem dos miseráveis, nem dos poderosos. De forma igual, não alimentamos os miseráveis porque a miséria é sempre muita, nem alimentamos os poderosos porque o poder é a eles sempre muito pouco.
O sintoma é geral, mas por escrever sobre o Judiciário, devo confessar minha inquietação em não saber onde vai parar a fome de poder de nossa Corte Constitucional, o Supremo Tribunal Federal.
As manifestações escancaradamente políticas de seus ministros têm sido frequentes: “derrotamos isto ou aquilo”, “é preciso combater este e aquele”. Os discursos de palanque extrapolam, e muito, a função judicial e os colocam como verdadeiros atores da vida política do país, algo digno de cargos do Poder Executivo, não do Judiciário.
Doutra banda, sofre também o Legislativo com a intromissão. Nas últimas semanas, a Corte atropelou –mais uma vez– o Congresso, ao legislar sobre descriminalização de drogas. A coisa virou rotina.
Em maio, 2 dias depois do PL 2.630 de 2020, alcunhado como das fake news, ter sido retirado de pauta pelos congressistas, o STF liberou para julgamento uma ação que regulava o gerenciamento de conteúdos nas redes sociais. O tema era idêntico ao do projeto de lei adiado. Claramente o recado era: ou o Legislativo vota, ou nós votamos no lugar dele. Quando o Congresso legisla, o STF reexamina. Quando não, atua em seu lugar.
Não bastassem as pescoçadas nos demais poderes da República, ao exercer a função de julgar, a Corte também cria problemas dentro do próprio Judiciário. Um caso recente foi o da terceirização de profissionais autônomos. O entendimento do STF, diverso do das Cortes trabalhistas especializadas, levou-as até mesmo a confrontar as decisões do Supremo.
A rachadura institucional com a Justiça do Trabalho reforça a sensação de que o STF é um Poder à parte. Os ministros chegaram a dizer em seus votos que “a engenharia social que a Justiça do Trabalho tem pretendido realizar não passa de uma tentativa inócua de frustrar a evolução dos meios de produção”. Como pensar na Justiça do Trabalho como um outro? Ela e o STF são –ou deveriam ser– um Judiciário só.
A fome da Corte não só belisca o bolo do Executivo e do Legislativo, como também molha seu biscoito na autonomia dos demais tribunais estaduais e federais. O STF se tornou o solucionador geral da nação, o resolvedor de toda e qualquer pendenga. O especialista em qualquer coisa. Como temos uma Constituição que trata de tudo, tudo é tema para o STF tratar.
Em 19 de agosto, um grande jornal alertou para a inexistência de elemento jurídico que justificasse tramitar no STF a investigação das joias supostamente ligadas ao ex-presidente Bolsonaro. Especialistas em direito penal foram ouvidos, mas curiosamente nenhum aceitou ser citado. Decerto, receavam serem vistos como críticos do STF.
Sendo assim, quem dirá: “calma, meu filho, come devagar senão engasga” ou “deixa um pouco para os outros, não coma tudo sozinho”?
.