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Aos amigos, a lei, por André Marsiglila

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Todos ficamos chocados nos últimos dias com a notícia de que um médico anestesista estuprou uma mulher grávida durante o parto. A prisão em flagrante só foi possível em razão de enfermeiras do hospital suspeitarem do médico e posicionarem uma câmera na sala, gravando na íntegra o ato criminoso.

O fato expõe o perigo de ser mulher nesse país, reforça que não podemos confiar em ninguém, pois vivemos cercados de horror e, de quebra, explicita que nossa legislação é muitas vezes fatto a mano, costurada de acordo com o gosto do freguês, de modo geral, os poderosos que sentam na cabeceira da mesa do país mas nunca pagam a conta.

Ocorre que a Lei 9296/96 traz expressamente em seu artigo 8-A, § 4° que a captação de som e vídeo, se não for feita mediante prévio conhecimento de autoridades, poderá ser utilizada como prova apenas em matéria de defesa. Ou seja, os advogados do anestesista terão um prato cheio para tornar imprestável para o processo uma prova irrefutável como essa, ou restará ao juiz aceitar o vídeo por meio de uma daquelas interpretações malabaristas que, embora salvem a dignidade do direito, acabam por legitimar o ativismo do judiciário e a subjetividade de suas decisões.

O parágrafo 4° é uma “pérola” incrustada no artigo 8-A da lei por obra de uma rocambolesca modificação do legislativo nos termos originais do Pacote Anticrime de 2019, e provavelmente foi pensado para conter a imprensa ou desafetos que pudessem flagrar poderosos em ação criminosa com a captação do som e vídeo de negociatas.

Não sejamos ingênuos, houve tentativas de veto do Executivo ao referido parágrafo, houve alertas vários a respeito de sua inconstitucionalidade, afinal é um absurdo se considerar ilícita uma prova unicamente em razão de beneficiar uma das partes. Mas os alertas e vetos foram rejeitados pelo legislativo. É desse grau de seletividade o que chamamos de garantismo hoje no Brasil. A garantia de uma visão libertária e ampla das leis e dos direitos depende da probabilidade de ser o contemplado algum figurão.

Há um célebre ditado que diz “aos amigos, tudo, aos inimigos, a lei”. Talvez tenha funcionado assim um dia o Brasil. Os favorecimentos eram feitos à margem da lei, excluindo os peixes grandes de seu alcance. No Brasil de hoje, virado do avesso e de cabeça para baixo, é ainda pior. Os favorecimentos são feitos por intermédio da própria lei, sequer há disfarce. Aos amigos, a lei. É o novo ditado.

Publicado na Revista Crusoé.