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As eleições na França e as manchetes extremistas dos jornais

Ou a esquerda que depreda e não respeita resultado de eleição merece ser chamada de extrema, ou ninguém é extremo, escreve André Marsiglia

Abro os jornais, com uma certa preguiça, e leio as manchetes: “A extrema-direita toma as eleições na França. Esquerda protesta nas ruas”

É curioso, as eleições não foram tomadas, mas vencidas, no último domingo (30.jun.2024) pelo voto nas urnas de 33,2% dos franceses. O percentual permitirá que o partido de Marine Le Pen ocupe 297 das 577 cadeiras e indique o nome do primeiro-ministro. 

As eleições foram regulares e legítimas. Já os protestos da esquerda nas ruas, nem tanto. Não se realizaram com debates e passeatas em vias públicas, mas com agressividade e vandalismo. A Place de la République parisiense amanheceu em chamas, com barricadas e disparo de fogos de artifício contra a polícia.  

Nesses termos, o que legitimaria as manchetes da maior parte dos jornais brasileiros classificar como extrema a ideologia que disputou eleições nas urnas e as venceu, e não-extrema a que, ao perder as eleições, depredou patrimônio público e incendiou praças em contendas com a polícia?  

Fechei os jornais, confuso. Tem algo errado nessa história. Pareceu-me o que fez a esquerda nas ruas da França extremismo, pareceu-me o que fez a direita no curso das eleições perfeitamente democrático. Será que para as pessoas só existe extremismo de direita? 

Não é aceitável que se imprima uma visão de mundo tão parcial nas manchetes de jornais. Será que extremismo se tornou apenas uma palavra solta, sem significado algum? Não deveria. Tivemos movimentos de esquerda e de direita suficientemente sérios na história do mundo para sermos levianos com o emprego de tal termo. Seriam então todas as ideologias extremas? Nenhuma delas? Seria eu o extremo, ou quem sabe a imprensa? 

Nessa reflexão, lembrei-me de uma passagem ótima do conto A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa, em que diante do inusitado de seu pai mandar fazer para si um barco, lançando-se em seguida no rio, acima e abaixo, sem dizer para onde, o filho cogita estar doido, igual ao pai. A mãe, aflita, refuta: “Na nossa casa, a palavra doido não se fala, nunca mais, aqui ninguém é doido. Ou, então, todos”.

Talvez o conto seja uma boa leitura aos que adjetivam os que não lhe são espelho com o vocábulo “extremo”. Afinal, ou a esquerda que depreda e não respeita resultado de eleição merece ser chamada de extrema, ou ninguém é extremo. Ou ninguém, ou todo mundo. Qualquer outra possibilidade é ser doido, ou, ainda pior, fazer-se de doido para sua plateia.