As bombas e a censura têm o condão de calar e de impedir que quem as arremesse seja ouvido, por isso estúpidas
Há exatos cinco anos, o periódico Charlie Hebdo publicava uma charge caricatural de Maomé. A versão tupiniquim ficou por conta do grupo humorístico Porta dos Fundos e de sua caricatura, em vídeo, de um Jesus gay, em episódio lançado às vésperas do último Natal.
Em ambos os casos, houve manifestações de todos os tipos: a favor, contra e daqueles que tentavam tratar da questão como se estivessem em um número de circo equilibrando o prato chinês.
Até que vieram as bombas. Até que chegou a censura.
O escritor angolano Manuel Rui, em ensaio sobre a colonização imposta pelos portugueses a seu país, lembra que, quando o invasor chegou, os mais velhos contavam estórias, e é certo que o invasor as podia ouvir e ser ouvido, mas preferiu os canhões. E, como é comum em cenários destes, a censura.
“As bombas e a censura, sempre estúpidas e inválidas, têm o condão de calar, por isso inválidas, e de impedir que quem as arremesse seja ouvido, por isso estúpidas. Não é à toa que, na estratégia de qualquer colonização, as bombas e a censura andem abraçadas.”
No mundo complexo em que vivemos, a falta de capacidade e de tempo para absorver ideias tornam o debate público mero entretenimento e o contaminam pela linguagem de propaganda, em que os posicionamentos se fazem por frases de efeito, slogans e estereótipos.
É nesse deserto de prazeres que a arte, da qual é filho o humor, propõe-se a ser ambígua, provocativa, transgressora. Essas, aliás, são as principais características da arte moderna. A discussão acalorada, a multiplicidade de leituras sobre o que todos pensaram e acharam sobre o vídeo do Porta dos Fundos são o que de melhor o humor pode nos oferecer.
É esse ambiente de debate que acalma os ânimos, e não a censura, e não as bombas. Depois delas, com o perdão do trocadilho, a discussão perdeu a graça. Se estivéssemos em uma pelada de rua, seria como se alguém pegasse a bola e a levasse embora.
Todos ficamos interrompidos em nossas saudáveis diferenças quando o barulho da bomba nos cobriu o debate, quando nos arremessaram no ar (ou fora do ar?) a censura, pois a defesa do direito do grupo humorístico deixa de ser parte de uma controvérsia inquietante, e passa a ser a defesa de nossos valores democráticos mais básicos, mais íntimos. Defender o direito de expressão, nesse caso, equivale à defesa da Constituição como um instrumento civilizatório.
Seria bom pensarmos que nosso caminho tem sido aceitar o convite de Manuel Rui, o caminho oposto ao da força, ao do autoritarismo, mas, analisando o Brasil, ainda que na superfície, seria uma ilusão.
Quando buscamos pluralismo com vigilância e repressão, quando afirmamos que censura não se debate, quando agredimos o intolerante com intolerância, quando acreditamos que o poder geral de cautela pode servir ao judiciário censurar obras artísticas, que a exceção bruta do direito pode ser a regra, todos nós, de alguma forma, mesmo sem nos darmos conta, lançamos bombas que explodem no nosso próprio colo, mais hora menos hora, invariavelmente.
Artigo publicado originalmente no Jota.