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Combater o Twitter e usar o consumidor como “alimento” para IA: o que a Meta realmente quer com o Threads

Uma rede dirigida de forma sã. Com essa promessa, a Meta, que controla o Instagram, o Facebook e o Whatsapp, lançou a Threads, sua nova rede social “inspirada”, para dizer o mínimo, no Twitter. Os usuários ávidos pela novidade puderam se cadastrar no aplicativo nesta segunda-feira (4), mas tiveram que esperar até a noite da quarta-feira (5) para começar a utilizá-lo.

A aposta da Meta parece estar bem encaminhada. O Threads bateu todos os recordes e chegou a registrar 1 milhão de usuários em apenas uma hora. Para se ter uma ideia, o Instagram, segunda colocada na lista, levou dois meses para chegar a esse volume de usuários. Após sete horas, a rede já contabilizava com mais de 10 milhões de usuários.

Não é de se estranhar que, entre as reclamações dos usuários, tenham sido relatadas dificuldades para fazer o download, para inicializar o aplicativo, além da indisponibilidade para usuários do Android, entre outras. Algumas publicações no Twitter até satirizam o retorno dos usuários à rede social de Elon Musk após tentativas malsucedidas de utilizar a “nova” rede de Mark Zuckerberg, o cofundador da Meta.

Mas tamanho rebuliço, acaba ofuscando a crescente segmentação dentro e fora das redes, bem como a coleta e compartilhamento irrestrito de dados de seus usuários.

Uma rede para cada segmento 

Em 2021, o fenômeno da segmentação em grupos de interesse extrapolou os limites das próprias redes e levou à criação de novos aplicativos. Na ocasião, o ex-presidente dos EUA, Donald Trump, um dos mais controversos usuários do Twitter, teve seu perfil cancelado por possíveis incitações ao ataque ao Capitólio.

Trump não só divulgou a criação de sua própria rede, a Trump Social, como levou milhares de seguidores para o Parler, uma plataforma semelhante ao Twitter. Mais recentemente, a rede de comércio PublicSq, de valores conservadores, tem crescido e se colocado como uma alternativa conservadora à Amazon.

No caso do Threads, o movimento vai em sentido contrário, ou seja, progressista. Desde que assumiu a direção do Twitter em 2022, Elon Musk tem deixado muitos dos usuários mais esquerdistas da rede social insatisfeitos com algumas de suas novas diretrizes e posicionamentos em defesa da liberdade de expressão. O bilionário está colhendo desafetos que buscam retirá-lo do patamar de “gênio da tecnologia”, para hostilizá-lo das mais diferentes formas, sempre em nome do progressismo politicamente correto.

De acordo com a descrição do novo app disponível nas lojas da Apple, a rede “é onde as comunidades se reúnem para discutir de tudo (…), você pode seguir e se conectar diretamente com seus criadores favoritos e outras pessoas que amam as mesmas coisas — ou criar seguidores leais para compartilhar suas ideias, opiniões e criatividade com o mundo”.

Ou seja, a descrição sugere liberdade de expressão e pensamento, mas o histórico recente das redes controladas pela Meta, como o Facebook e o Instagram, de exclusão de postagens verdadeiras sobre a Covid-19 apenas para agradar o governo dos EUA e instituições progressistas apontam justamente na direção contrária.

No dia 5 de julho, ao comentar uma postagem replicando sua decisão de apagar o perfil do Instagram em agosto de 2018, Musk afirmou que “é infinitamente preferível ser atacado por estranhos no Twitter, do que se entregar à falsa felicidade de esconder a dor no Instagram”.

O poder da publicidade

Ocorre que, no universo das redes sociais, a segmentação é a regra. Cada perfil é totalmente classificado de acordo com suas preferências e tendências. Tudo isso é determinado a partir das informações que as pessoas fornecem, livremente, para as próprias redes: curtidas, comentários, seguidores, perfis que seguem, bloqueios de conta.

Esse verdadeiro labirinto de ferramentas e dados tem um único objetivo: entender quais as tendências de comportamento de cada usuário para que, dessa forma, os anúncios induzam a compras de seja lá o que for, desde serviços a produtos de beleza, roupas, relógios ou notícias. E, claro, quanto mais vendas melhor, já que o aumento na conversão de compras justifica os gastos das empresas com publicidade, que é o motor de toda essa gigantesca máquina de persuasão.

Só que, agora, além da publicidade, outro vetor entrou definitivamente em cena e pode ser uma chave para entender a nova empreitada da Meta, pelo menos do ponto de vista empresarial: coletar dados para o treinamento da Inteligência Artificial (IA). Não é de hoje que isso ocorre, mas o lançamento do ChatGPT no ano passado parece ter funcionado como o gatilho ideal para a corrida desenfreada pela liderança no setor. E essa disputa tem ganhado novos contornos a cada dia.

A IA e os dados 

Independentemente das aplicações que estejam sendo desenvolvidas, uma peça fundamental para o desenvolvimento de determinados sistemas de IA é o acesso a uma ampla base de dados. Segundo o especialista em Inteligência Artificial e CFO da Pix Force, Marcos Rogério, todas as soluções baseadas em redes neurais ou aprendizado de máquina (machine learning) trabalham com reconhecimento de padrões. “É o caso do ChatGPT, que prevê a probabilidade de certas palavras aparecerem juntas”.

E, para reconhecer esses padrões, os sistemas de IA precisam ser “alimentados” por uma base de dados, a partir da qual elas fazem essas combinações de informações mais prováveis. Segundo Rogério, “quanto mais dados elas recebem, mais precisos são os resultados, extrapolações, textos e imagens que elas conseguem gerar”.

Apenas neste ano, a Meta pretende investir “US$ 33 bilhões para o aumento contínuo de sua capacidade de IA”, disse a diretora financeira da empresa, Susan Li, em uma teleconferência para demonstração de resultados realizada em abril. Segundo o site inglês especializado em tecnologia The Stack, as ações da empresa apresentaram um aumento de 10% após seus rendimentos chegarem a US$ 28 bilhões no primeiro trimestre do ano.

Para os executivos da Meta, o crescimento é resultado do uso de soluções de IA. Em abril deste ano, cerca de 40% do conteúdo a que os usuários do Instagram tinham acesso era decorrente de recomendações feitas por sistemas de IA, ao invés de sugestões com base nos perfis que eles seguem. No Facebook, a porcentagem era um pouco menor, chegando a 20%.

Em menção ao lançamento do Threads, o cofundador e antigo CEO do Twitter, Jack Dorsey, publicou uma foto das configurações de privacidade do aplicativo com a frase “todos os seus Threads pertencem a nós” – em referência ao nome da nova rede da Meta e ao histórico de interações e respostas de um post ou hashtag, ou seja, a todas as informações vinculadas a cada postagem.

O estudante de Ciência da Computação da Brown University e artista 3D na rede de sites de tecnologia 9to5Mac, Ian Zelbo, fez publicações semelhantes. Em seu perfil no Twitter, ele postou um vídeo no qual passa a barra de rolagem pelas configurações de segurança e privacidade do Threads e questiona: “Pergunta séria. Existe uma opção que eles não selecionaram…?” Em outra postagem, ele afirma que “sem surpresa, o concorrente da Meta para o Twitter coleta todos os seus dados”.

Dados aplicados 

Segundo Rogério, ao fornecer dados de seus usuários para a IA, a Meta consegue treinar as suas próprias soluções de maneira gratuita, além de fazê-las “conhecer” seus usuários e customizar conteúdos e ações de marketing. As habilidades vão além e ainda incluem a “previsão de determinadas escolhas ou ações das pessoas em um dado contexto, a projeção de cenários com base nos padrões de comportamento atuais de seus usuários (como maior aceitação ou rejeição de determinadas pautas), bem como a criação de modelos mais precisos e abrangentes”.

Ou seja, segmentar o público é uma forma simples de fazer com que a IA ofereça respostas plausíveis e anúncios mais efetivos. Também diminui a possibilidade de debate e consenso entre ideias aparentemente opostas, o que aumentaria os riscos de incorreções por parte das IAs na hora de se “expressar”.

Outro ponto é que, com as redes segmentadas, cai o risco de cancelamentos, controvérsias e prejuízo para as empresas, como ocorrido com a Bud Light, por exemplo, que chegou a sofrer perdas financeiras após anúncio mal recebido pelo público americano.

E não é só a Meta que está ávida por dados. No sábado, 1o de julho, o Google atualizou seus termos de privacidade e segurança a fim de utilizar os dados públicos de usuários para treinar e desenvolver seus modelos de IA.

Legalidade 

Segundo André Marsiglia, advogado constitucionalista e professor, no Brasil “a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) exige que o usuário seja informado sobre qual será a utilização específica de seus dados. Treinar e testar uma inteligência artificial para produtos de uma empresa é um uso abstrato o bastante para que possa ser considerado prática ilegal”.

Marsiglia ainda afirma que além do dever de transparência, a LGPD permite ao usuário escolher se deseja ou não que seus dados sejam utilizados – o que, no caso do Threads e do Google, não é uma opção, já que, ao não concordar com os termos, os usuários ficam impossibilitados de utilizar as plataformas.

“Caso não seja facultada ao usuário a possibilidade de escolha ou, uma vez fiscalizada, for verificado que a empresa não respeita tal escolha, a empresa poderá ser responsabilizada por meio de multas e processos judiciais”, complementa ele.

Na União Europeia (UE), a nova legislação para regulação de IA, que está em fase final de aprovação pelo Parlamento Europeu e suas instâncias, também estipula parâmetros para a coleta de dados e seu uso para treinamento de IA. Não por acaso, o Threads ainda não está disponível na UE, pois o aplicativo precisa se adequar às novas normas.

Sobre o cuidado e as restrições para o uso de dados, Rogério explica que, sem dúvida, há sérios riscos envolvidos. “Dados como orientação sexual, histórico de doenças ou registro criminal podem ser utilizados de maneiras tendenciosas por uma IA sem supervisão, que pode tirar certas “conclusões” prejudiciais a uma pessoa ou grupo (em relação a conteúdos ofensivos, limitar o acesso a determinadas informações, negar crédito, etc)”, o que já acontece, por exemplo, com o sistema de créditos sociais na China.

Procurada, a Meta respondeu a reportagem com um posto do chefe do Instagram, Adam Mooseri, falando sobre o Threads.

Publicado em Gazeta do Povo.

@marsiglia_andre

andremarsiglia.com.br