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Advogado constitucionalista critica proibição a fala de Monark

André Marsigilia afirma que risco à democracia não pode justificar restrição a liberdade de opinião

O advogado constitucionalista André Marsiglia, 44 anos, criticou decisões do STF (Supremo Tribunal Federal) que, na sua avaliação, impedem a liberdade de expressão. Marsiglia, especialista em direito digital e pesquisador de casos de censura, concedeu entrevista ao Poder360.

Ele identificou problemas no bloqueio das redes sociais do influencer Bruno Ayub Monteiro, conhecido como Monark, na 3ª feira (13.jun.2023). A decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), teve como motivo a detecção pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) de declarações de Monark levantando dúvidas sobre o processo eleitoral. Moraes é o atual presidente da Corte Eleitoral. Eis a íntegra da ordem de bloqueio (166 KB).

A preservação da democracia é o argumento usado em apoio a decisões como a que restringe a manifestação de Monark. Marsiglia diz que esse princípio é importante, mas está sendo usado de modo contrário a seu propósito. “Se nós eliminarmos as garantias individuais nas circunstâncias em que a democracia está em perigo, talvez nós fiquemos com uma democracia sem garantias individuais”, afirmou.

A seguir, trechos da entrevista de Marsiglia ao Poder360.

Poder360 – O senhor disse que há problemas na decisão do STF sobre Bruno Ayub Monteiro, o Monark das redes sociais. Quais são esses problemas?

André Marsiglia – Os problemas são as premissas da decisão. Eu nem estou considerando se é ilícito, se é ilícito [o que ele fez]. A decisão do ministro Moraes parte de duas premissas básicas. A 1ª de que é necessário que se contenha futuros atos que possam se assemelhar ao do 8 de Janeiro. O Judiciário, a não ser que haja um indício muito forte e sólido, o que não é mencionado na decisão, não tem a função de polícia, de prevenir atos futuros e potenciais ou possíveis. Isso não cabe numa decisão judicial. Outra premissa da decisão que eu acho que a fragiliza é entender que, nessas circunstância.

Monark diz: “Você vê um monte de coisas acontecendo e, ao mesmo tempo, eles impedindo a transparência das urnas? Você fica desconfiado que maracutaia está acontecendo nas urnas ali?”. Esse trecho pode ser considerado opinativo?

É uma indagação. É claro que ele tem a intenção de convencer o outro com a sua opinião, de criar algum tipo de questionamento que pode trazer desconforto, que pode até mesmo ser criminoso. A questão é que, se você parte do pressuposto de que isso é uma notícia, de que é uma fake news, de que é uma afirmação, com a intenção de dizer que essa é a verdade dos fatos, você interpreta de uma forma equivocada essa opinião. Existe uma opinião e não é necessariamente inquestionável. Não é que o Estado não possa criminalizar uma opinião. Mas a visão sobre a opinião deve ser mais elástica. Tem que entender que a subjetividade está contida naquela opinião, que a possibilidade de erro e de acerto são mais permeáveis quando uma opinião é dita.

Um argumento que se usa na decisão é de que não se pode propagar desinformação. O que seria desinformação?

A desinformação é o contrário da informação e a informação necessariamente é notícia. Então a gente tem que pensar que uma opinião não pode ser confundida com desinformação. Porque não há intuito de informar com a opinião. A minha opinião não tem o intuito de ser a verdade de ninguém. Simplesmente tem o compromisso com a minha visão subjetiva. A minha análise não é a realidade. Não tem a intenção de ser a realidade. Tem a intenção de ser a minha visão, a minha leitura da realidade. Essa subjetividade é muito relevante. Então desinformação é um conceito que não pode ser aplicado a opiniões. Não existe desinformação em algo que não tenha pretensão de ser informativo.

Em algo objetivo, como o fato de um prédio estar pegando fogo, é fácil dizer se a informação é falsa ou não. Em algo subjetivo, como se pode avaliar isso?

É complicado. Mesmo o “não estar pegando fogo”, a gente precisa analisar. Bom, não está pegando fogo, mas e se eu estiver enxergando o prédio de um ponto de vista e você estiver enxergando de outro? E se [o que está] pegando fogo é um papel que aparentemente não põe em risco o prédio como um todo? Fake news é hoje traduzida, entendo eu, de forma errada, por notícia falsa. Nem notícia é, porque não existe notícia falsa. Notícia tem essa característica de ser informativa e ter veracidade. Agora, se a gente for pensar, por exemplo, na possibilidade de que uma desinformação se constitua como um um ilícito, nós precisamos necessariamente traduzir isso. A ideia de fraude tem de estar presente na desinformação justamente para que a gente não entre nesse tipo de subjetividade, se o fogo é perigoso ou se não é, se é do meu olhar ou do seu. Então, a ideia de que eu tenho a intenção deliberada de fraudar o debate com aquela informação é relevante. E quando as decisões são tomadas pelo Supremo do dia para a noite, sem necessariamente haver uma análise se aquele conteúdo é ou não fraudulento, nós resvalamos na possibilidade de decisões equivocadas.

Em caso de comprovada a desinformação, pode-se considerar que há crime?

Se a gente partir do pressuposto de que a ideia de desinformação pressupõe a fraude, sim, há crime. Agora, ainda assim, não necessariamente aquilo deve ser retirado [de acesso público]. Há diversas decisões judiciais, por exemplo, que pedem indenização a respeito de um conteúdo ou outro nas redes sociais e que não pedem que aquele conteúdo seja retirado. Se a parte, por exemplo, entra com ação e não pede que seja retirado, o juiz não pode fazer isso por ele mesmo. Há uma série de conteúdos considerados ilícitos que estão por aí nos jornais, até mesmo nas redes sociais, simplesmente porque aquilo foi impugnado parcialmente, não se pediu a retirada.

Em que que se pode caracterizar a fraude? É a intenção de causar dano, é a capacidade de causar danos? São as duas coisas?

É isso mesmo: o dolo, a intenção deliberada, explícita, de criar algum tipo de notícia mentirosa, aí sim, falsa. A gente teve um recente evento na China de uma pessoa que foi presa em razão de usar o Chat GPT para unir notícias antigas sobre acidentes de trem. Tudo era mentiroso. Isso é uma intenção deliberada de fraudar o debate e criar caos. Isso, por exemplo, é uma deformação e, sem dúvida, alguma precisa ser punida.

Isso está pressuposto na decisão do STF. Não é dito de modo suficientemente claro?

A intenção da decisão do STF, de todas que têm sido proferidas nos últimos tempos, é evitar que haja caos em um debate público. Só que eles partem, entendo eu, de uma premissa que não é o reconhecimento da fraude, [que] é necessário apenas o reconhecimento de que aquilo tem algum perigo social, ou alguma possibilidade de uma má intenção, ou de um questionamento que possa levar ao caos. É uma pressuposição muito subjetiva para determinar uma decisão tão agressiva como a de retirada de conteúdos ou impedimento de alguém se manifestar.

Isso contrasta com outras decisões judiciais?

Vou dar um exemplo na esfera eleitoral que também foi muito tratada nos últimos meses. A retirada de conteúdo na esfera eleitoral tem uma premissa que é o conteúdo ser sabidamente inverídico. Esse sabidamente inverídico sempre foi tratado com muito cuidado pelo Judiciário no sentido de que eu que eu, emitindo aquela informação, preciso saber que aquilo é inverídico. Então existe o conteúdo da fraude. Eu sei que aquilo é inverídico e de forma consciente, intencional e deliberada, me manifesto daquela forma. Minha intenção [no exemplo] é fraudar o debate. Nós temos assistido a interpretações [que] não são necessariamente se a pessoa sabe que aquilo é inverídico, mas que, de uma forma geral, no consenso, aquilo é sabidamente inverídico. As pessoas descobrem que aquilo é inverídico, a opinião pública se manifesta, uma agência de checagem diz que aquilo é inverídico, e isso já é suficiente para aplicação desse artigo. É uma mudança de entendimento. E óbvio que contém uma subjetividade porque a sociedade saber que é algo é inverídico não necessariamente significa que aquilo seja perigoso ou que a sociedade esteja correta.

Sobre outro caso envolvendo o influencer Monark: em fevereiro de 2022, ele disse: “Deveria existir um partido nazista legalizado no Brasil”. Isso se enquadra em liberdade de expressão?

Entendo que, nesse caso, não. O limite da liberdade de expressão é você desejar que o conteúdo sirva para fomentar o debate. No momento em que você deseja a extinção do outro, ou que você é a favor de discursos que desejam a extinção do outro, 1º isso é moralmente lamentável; e, 2º, é óbvio que, se o outro for extinto, não tem debate. Você fica falando sozinho. E quem fica falando sozinho prega não o debate e sim o autoritarismo. Então o limite da liberdade de expressão, sem dúvida alguma, é você pregar a extinção do outro. Nesse caso eu entendo que houve uma violação do limite da liberdade de expressão pelo podcaster.

Se decisões do STF, que é a mais alta corte do país, estiverem erradas, o que que pode ser feito?

Pois é, essa é uma grande pergunta. Há cada vez mais decisões que partem do STF, sobretudo desde abril de 2019, com o advento dos chamados inquéritos das fake news, que depois se desdobraram nos inquéritos dos atos antidemocráticos. Hoje há 8 inquéritos ramificados a partir desse, que partem de decisões do STF, geralmente monocráticas. Isso é um problema. Você recorre a quem se o próprio STF tem decidido nesse sentido?

Eu participei, como advogado, de algumas das partes envolvidas, até veículos de comunicação e jornalistas, e era uma grande dificuldade, 1º de acesso ao inquérito, para saber do que se trata e poder enfrentá-lo. E, 2º, conseguir fazer com que aquilo fosse avaliado ou reavaliado pela própria corte. Existe, óbvio, no mínimo, um constrangimento em recorrer da corte à corte. Isso é o grande problema de o STF chamar para si as decisões inaugurais de quaisquer atos a respeito de desinformação, fake news, discurso de ódio, no país. Isso deveria estar com as cortes infraconstitucionais, com a 1ª instância, para as decisões mais maduras e últimas serem dadas pelo STF.

O STF embasa as decisões na interpretação de que há ameaça a um bem maior, a democracia. Isso justifica decisões incomuns?

Esse é um pressuposto, sem dúvida alguma, respeitável. Mas se nós estamos diante de um risco democrático e a liberdade de expressão precisa ser contida de forma às vezes abrupta em nome de nós mantermos a nossa democracia, me parece que a gente precisa pensar que tipo de democracia quer manter, porque nós não vamos ter como consequência uma democracia flexível. Não existe democracia sem liberdade de expressão. Se nós eliminarmos as garantias individuais nas circunstâncias em que a democracia está em perigo, talvez nós fiquemos com uma democracia sem garantias individuais, o que significa ausência de democracia. É óbvio que a gente precisa levar em conta a democracia na hora de tomar uma decisão judicial. Nós precisamos também levar em conta o que estamos fazendo para o futuro com a liberdade de expressão. Não existe democracia com a voz única. Voz única é absolutamente incompatível com qualquer valor democrático.

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