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O dia da liberdade de imprensa não se comemora, por André Marsiglia

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A censura no Brasil é estrutural. Nossos legisladores, governantes e autoridades não enxergam o exercício das liberdades de expressão e de imprensa como conquistas, mas como concessões

Neste último dia 3 de maio comemorou-se o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. Por coincidência, no dia seguinte, 4 de maio, comemorou-se meu aniversário. Como advogo para jornalistas e veículos de imprensa há muito tempo, todo ano tenho essa sombra em minha vida. Não bastasse ter de fazer vistas grossas aos anos que me pesam as costas, ainda tenho de fingir que há algo a ser celebrado pela data do dia anterior.

Não me venham contestar com índices e números, dizendo que o Brasil melhorou neste ou naquele ranking. Os atentados à liberdade de imprensa em um país como o nosso não mudam com os anos ou com a troca de governantes, seja em razão de serem sempre ruins – os anos e os governantes –, seja em razão de ser a censura no Brasil – usarei um termo da moda – estrutural.

Posso provar. O debate, em um país autoritário como o nosso, nunca é feito a partir do que vem a ser o conceito de liberdade, mas sim do que vêm a ser seus limites. É uma total inversão de valores. Nos dedicamos menos a discutir o conceito de liberdade e mais a discutir como ela deve ser extirpada de nós. Faça o leitor mesmo um teste: digite no google a expressão “liberdade de imprensa” e verá que a maior parte dos artigos de opinião, reportagens jornalísticas e estudos acadêmicos a respeito do tema não trata da “liberdade”, mas de seus “limites”. Somos um país que impõe limites a liberdades que não debatemos, nem sabemos bem o que são. O que lhe parece, caro leitor? Não consigo imaginar exemplo mais potente de que somos um país censório e autoritário em nossas raízes culturais mais profundas.

Outro bom exemplo também pode ser tirado do quanto nossos legisladores, governantes e autoridades não enxergam o exercício das liberdades de expressão e de imprensa como conquistas, mas como concessões. Nos dizem, frequentemente, assim: “você tem a liberdade de se manifestar, desde que seja para um fim nobre”. Quem já não se deparou com frases de efeito de autoridades em busca de likes lacradores: “liberdade, mas com responsabilidade”. Alguns, querendo enfeitar o bolo, rebuscam: “trata-se de um binômio, liberdade e responsabilidade”. Todos falam conosco como um pai severo que nos oferta o doce, apenas depois do jantar e se nos comportarmos bem.

Caro leitor, o pior de tudo é que nos comportamos bem: elegemos tiranetes e os chamamos de democratas, somos censurados pela Suprema Corte e os chamamos de Batman, aplaudimos projetos de lei que cerceiam nossa liberdade de expressão como uma dádiva, dançamos e cantamos ao som do pouco ou nada que temos, comemoramos aniversários, mesmo com tudo do avesso. Celebramos a sério o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, mesmo vivendo em um país como este.

Há leitores que me dizem, quando escrevo sobre imprensa: “tem que censurar mesmo, a imprensa no país não é séria”.  “Ora, meu amigo, que raciocínio torto”, respondo. “Não é a imprensa que faz séria a liberdade, mas a liberdade que faz séria a imprensa; quem não quer imprensa, retira dela a liberdade.” Restam os convictos que, embora não se curvem, se machucam e vão se cansando, com os anos que também lhes pesam as costas.

Publicado na revista Crusoé.