No meio jurídico, o trabalho do judiciário tem sido visto mais recentemente de forma contundentemente crítica. Outrora, isso não ocorria, o mesmo trabalho era visto com olhares complacentes e amigáveis.
Por sua vez, o trabalho do legislativo sempre foi, e é cada vez mais visto com olhares de reprovação, como se o legislador, por sua quase sempre natural ausência de técnica jurídica, (afinal, nem todo legislador tem tal formação) fosse um voraz produtor de “pérolas”, que depois precisam ser desfeitas pelo judiciário, ou consertadas pelos assim chamados operadores do direito. Há até uma máxima nos corredores da profissão que diz que o intérprete é sempre melhor do que o legislador, reforçando essa visão crítica.
Pois bem. Com esse cenário em mente, me saltou aos olhos quando, numa cotidiana leitura matutina, verifiquei que, ao tratar de estética na Idade Média, em um belo texto de nome “arte e beleza na estética medieval”[1], Umberto Eco, em tradução livre de Boécio, apontava que este via na música uma ciência matemática das leis musicais, sendo o músico, o teórico, o conhecedor das regras; sendo o executante o mero operador das regras, e o compositor sendo o instintivo, que desconhece a beleza advinda do conhecimento teórico. (ECO, 2010, P.66)
O quadro acima pintado me deixou tentado a traçar um paralelo com o Direito. Claro que, para isso, preciso registrar que se está a tratar do Direito Moderno, e brasileiro, claro também que, para isso, preciso registrar que a época acima pintada supervalorizava o músico teórico, fazendo evidente juízo de valor decorrente do vício teoricista típico da época medieval.
Pois bem. Dito isto. Seria quem no direito o músico? O jurista, alguém diria, ok. Aceitável. Seria quem o executante? O operador do Direito (juízes, advogados, promotores e demais). Ok. E o compositor quem seria? O legislador, em representação ao cidadão, diria quem sabe alguém, com voz constrangida, não sem alguma ou muita hesitação.
Reconheço um tanto fora do comum se pensar no legislador como alguém criativo, sobretudo em razão do entendimento comum atual de que a criação é algo estranho a uma ciência vista de forma tão sisuda como a jurídica. Em geral, quando o legislador traz à tona um projeto de lei criativo são tomados (o projeto e o legislador) por inadequados. É recriminado seu atecnicismo, é lamentado que não tenha consultado alguém. Quem? Os teóricos, decerto.
Mas, afinal, se os compositores medievais (e não somente os medievais) consultassem os teóricos seriam necessariamente bons compositores? Dirá alguém que é raro, mas não impossível, reunir-se em si a técnica e a criação. Concordo, mas não se pode ficar refém de exceções. E o fato criativo não pode estar a elas sujeito, pois é ele que trará à música a experiência sensível, e é a experiência sensível que dará ao cidadão a experiência tátil do justo no direito.
O sensível, o tátil, no direito, são, em suma, uma experiência relacional entre a cultura, entre os costumes, e a confecção das leis, por isso o fato criativo precisa permear a obra de arte musical e o artifício da obra legislativa.
A lei deve se legitimar não pela perpetuidade de seu conceito, mas pela capacidade de suportar em si a “desobediência” que os costumes, sempre mutáveis, lhe acrescentariam. O fato criativo é, em outras palavras, por meio da observação da cultura, dos costumes, o local de mutabilidade, o terreno de ausência de solidez, o terreno insólito.
Assim, falando com Bonder[2], toda lei que não deixa em aberto a possibilidade de sua execução, justamente por sua “desobediência”, é uma arbitrariedade” (BONDER, 1998, p. 25). E a quem pensa que poderia tal criatividade, tal mutabilidade, tal desobediência, para usar o termo de Bonder, ser um mal, o próprio Eco, citando Alexandre de Hales, (ECO, 2010, P.74-75) insinua que a beleza nasce de contrastes, exemplificando que os monstros tem uma razão e uma dignidade na criação medieval, e que também o mal torna-se na ordem belo e bom, pois dele nasce o bem, e a seu lado o bem refulge melhor.
Essa afirmação é básica ao manuseio teórico de qualquer ciência humana, em diversas épocas. Dionísio lembrava que é exatamente a estranheza do símbolo que o torna palpável e estimulante para o intérprete (ECO, 2010,P.109). Nejar, em seu compêndio sobre a literatura brasileira[3], deixa exemplos importantes desse tipo de olhar em diversos autores: Richard Rorty ponderava que a literatura não faz progresso por tornar-se mais rigorosa, porém, por tornar-se mais criativa; Valery dizia que o importante é que o livro seja vivo, e o será habitando a linguagem, pois, com Elias Canetti, o tema é que explode a forma, não a forma que explode o tema (NEJAR, 2011, P.23-27).
Para além de todo exposto, com o pensamento apenas na prática do direito, é válida a lembrança de que se o fato criativo for arrancado do fazer legislativo, ficarão fora das leis a nossa cultura, os nossos costumes, e quando a lei fraquejar, e fraqueja sempre, tenha certeza, serão, não os legisladores, mas os teóricos, e sobremaneira, os operadores, os que manusearão o fato criativo, não no seu nascedouro, mas na sua interpretação, e, assim, tais intérpretes, por um lado, ultrapassam as leis, inventando normas; por outro, calcificam visões, por meio de súmulas. É o que se vê.
Em última linha, sobra para o técnico a atecnia criadora, e isso é, certamente, mais maléfico que benéfico. O próprio Eco, em seu mencionado texto, aponta que o avestruz já foi um dos símbolos da justiça. (ECO, 2010, P. 108). Nada mais oportuno.
[1] ECO, U. Arte e Beleza na Estética Medieval. Rio de Janeiro: Record. (tr.pt. Sabino, Mario, 2010)
[2] BONDER, N. A Alma Imoral. Rio de Janeiro: Rocco,1998.
[3] NEJAR,C. História da Literatura Brasileira. São Paulo: Leya, 2011.