O Brasil se encontra atualmente ranqueado como um dos países mais violentos do mundo, contra a imprensa e o jornalista.
Soubemos disto entre entristecidos e acanhados e ainda mais desolados ficamos ao ler notícias e comentários sobre o fato, inclusive internacionais, como as divulgadas pelo importante Knight Center of Journalism, da Universidade de Austin, no Texas, dando nos conta de que o mundo está atento e nos critica, com razão, infelizmente.
O fato é absolutamente vergonhoso e somente pode afligir a um povo que conquistou, a partir de 1988, a promulgação de uma Constituição que definiu o seu país como um Estado Democrático de Direito, dentro do qual foram consagrados, como valores de proa, os fundamentos da cidadania e da dignidade da pessoa humana. Esta, o valor fonte de todos os valores, como nos ensinou o grande e muito saudoso mestre Miguel Reale, ao homenagear a chegada da então tão esperada Carta cidadã de 88.
Somente a definição do modelo político adotado a partir de 88, demonstra, com grande nitidez, o espírito liberal que guiou o legislador constituinte, porquanto ao destacar o adjetivo “Democrático” ao lado dos termos “Estado de Direito”, claramente quis estabelecer, segundo palavras do grande filósofo acima referido, que o Estado se originou da vontade manifestada pelo povo, excluída a hipótese de uma Constituição outorgada por qualquer autoridade, civil ou militar, ainda que consagrasse princípios democráticos.
É sabido que a democracia é, sobretudo, o regime político alicerçado na opinião pública, do que se depreende, logicamente, que a imprensa, como porta voz dessa opinião, deverá, ao lado do cidadão, exercer a vigilância eficaz e espontânea da causa democrática.
A humilhante classificação levou mais em conta as violências físicas sofridas pelos profissionais de imprensa e não tanto os também frequentes e brutais atos de censura e limitações ao jornalismo livre, dos quais a mídia brasileira é ainda vítima constante. Mas o que realmente importa é que isto serviu para incentivar os legisladores a se ocuparem, rapidamente, de projetos de lei que vão desde a utilização de coletes à prova de bala para as coberturas jornalísticas arriscadas, até a federalização dos casos específicos ou a qualificação, como crime hediondo, da figura delituosa praticada nesse âmbito, além de outras propostas legislativas, a exemplo do adicional de periculosidade ao jornalista, etc.
Tudo é muito válido e bem vindo, muito embora, como nos ensinaram os antigos, depois da burra arrombada não mais serão tão eficazes as trancas de ferro.
Mudando um pouco o rumo da conversa, podemos, com uma passada de olhos pela história do País, deparar com tristes cenários de extrema violência contra a imprensa e o jornalista, a demonstrar que a memória da Nação coleciona nódoas indeléveis no terreno da intolerância em relação à autonomia da vontade do cidadão em exprimir, com liberdade, sua opinião, ideias e pensamentos.
Durante a fase mais instável do governo de Pedro I, quando, talvez por vacilação política do imperador, que se alternava entre o firme libertador da Pátria e o hesitante príncipe herdeiro, por vezes mais ansioso em se aproximar de Portugal do que de governar o Brasil de forma emancipada, um perigoso clima de insegurança política apoderou-se do País.
A hesitação, contrastante com a euforia popular gerada pela recente declaração da Independência, levou o governo a adotar postura autoritária e, por conseguinte, perseguição, levada a efeito pelos prosélitos do príncipe, aos opositores do poder.
Dentro desse ambiente, um grande homem, João Batista Badaró, jovem médico italiano que adotou o jornalismo como profissão e o Brasil como sua pátria, foi covardemente assassinado por aqueles que ele costumava chamar, em suas inflamadas e destemidas manifestações de imprensa, divulgadas nas páginas do célebre “Observador Constitucional,” de “os amigos das trevas”.
Giovanni Baptista Badaró entrou para a História com o nome maçônico de “Libero” Badaró e o Brasil como o seu algoz.
Um século após, Rui Barbosa, lutador incansável pela autonomia da crítica jornalística, autor intelectual do primeiro texto constitucional republicano, alertava para a necessidade de se estabelecer a proibição da censura como sendo condição essencial do Estado de Direito, escrevendo que: “toda a lei de tutela à publicidade, toda lei de inspeção policial sobre jornais é, por consequência, usurpatória e tirânica”. Por conta desses arrebatadores arroubos em favor da liberdade de opinião é que Rui Barbosa viu-se obrigado a fugir do Brasil para se por a salvo da violenta perseguição levada a efeito pelos seguidores da tirania de Floriano Peixoto. Este, aliás, até ser criticado veementemente pela pena jornalística de Rui, ao que nos narra a história, foi seu muito assíduo ouvinte e sincero admirador.
Numa das páginas de abertura da edição de 1929 da imperdível “Cartas da Inglaterra”, escrita por Rui no exílio, o prefaciador e organizador da publicação, Batista Pereira, seu genro, destacou o desabafo do grande jornalista e jurista, antes da sua saída às escondidas do Brasil: “Custa a crer, mas o certo é que meus clientes dos habeas-corpus de abril e setembro, (…) por quem eu arriscara tudo, não se lembrassem do seu advogado, para lhe darem, quando ao menos, um sinal de interesse pela sua vida.”
Frise-se que Rui foi perseguido, não como advogado ou jurista, mas sim como jornalista e o Brasil mais uma vez se projeta como perseguidor implacável, em nome da censura, de um dos brasileiros mais notáveis, de todos os tempos.
Mais meio século se escoa e acontece o golpe militar de 1964. Dentro dele foram promulgadas a Constituição de l967 e a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, ambas absolutamente garroteadas por Atos Institucionais e Complementares, além de Decretos, editados em tal abundância pelo poder executivo do regime, que o País passou a ser conduzido, segundo palavras sábias do grande constitucionalista Afonso Arinos de Mello Franco, por profusa e confusa legislação de direito público, nada invejável sob qualquer foco que se lhe queira observar.
Dentro desse ambiente foi promulgado o tristemente célebre AI5, em dezembro de 1968, o qual instalou a ditadura no seu mais totalitário e despótico modelo.
O AI5, em realidade, decretou o fim do regime constitucional no País e, por força dessa insanidade jurídica, instaurou-se o caos no ambiente sócio cultural e político da terra, com as portas imediatamente escancaradas para o autoritarismo desmedido contra os direitos e as garantias do cidadão, de exercer com liberdade suas convicções e de manifestar ideias e opiniões com autonomia.
Dentre as calamidades ocorridas nessa época, deverá ser sempre lembrado o assassinato do jornalista Vladmir Herzog.
Inúmeras outras insanidades foram cometidas, o caso Herzog as simboliza. O Brasil foi o palco dessa triste realidade.
Correu o tempo e em 1988 a ditadura foi banida do País, pela promulgação da Constituição democrática.
A liberdade irrestrita, assim, deixou o domínio íntimo da consciência e o campo dos anseios dos espíritos superiores para ter existência real e concreta, por determinação expressa do texto constitucional.
Malgrado tal conquista, o Brasil, como dito, acaba de ser classificado como um dos países mais violentos do mundo contra o direito fundamental de informar e de ser informado, que ele próprio consagrou, pelo seu Estatuto Supremo, como norma fundamental e pétrea da Nação.
É inevitável a conclusão de que o País, em realidade, precisa aprender a assimilar e a respeitar suas Instituições para, no mínimo, merecer o título de Estado Democrático de Direito, cujo objetivo, segundo expressa declaração preambular da Carta Constitucional é: assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.