Ao desejar mudar o mundo, Judiciário torna-o espelho do que é e do que pensa, não daquilo que a população é e pensa, escreve André Marsiglia
A ministra Cármen Lúcia gosta de uma frase de efeito –todos sabemos. Meu leitor mais atento sabe que não é a 1ª vez que suas frases merecem um artigo. Desta vez, ao justificar aprovação de resoluções eleitorais que atropelaram o PL 2.630 de 2020, das fake news, e transformaram plataformas e redes sociais em polícia de conteúdo do usuário, a ministra disse não querer ser “juíza de um mundo caduco”, em alusão a verso de Drummond que dizia “não serei o poeta de um mundo caduco”
Mas espera um pouquinho, ministra. Existe uma imensa diferença entre ser um poeta que, com seus recursos, inventa o próprio mundo, e um juiz que, com recursos do Estado, inventa leis de sua própria cabeça. Além de poeta, Drummond foi funcionário público e, enquanto trabalhador do Estado, não se negou a servir o mundo que havia, ainda que fosse caduco. Sabia bem que a escolha do que seria o mundo não era dele, mas da população e de seus representantes no Congresso.
A população escolhe o que seus juízes devem ser pelas leis. Se são caducas, os juízes devem viver, sim, em um mundo caduco, até o momento em que a sociedade decidir com seus legisladores modernizá-lo. Um juiz não está capacitado, nem legitimado, a falar em nome da coletividade. Representa apenas –e com alguma sorte– a sua cabeça.
Ao desejar mudar o mundo, torna-o espelho do que é e do que pensa, não daquilo que a população é e pensa. Nesse sentido, melhor um mundo caduco que um mundo moldado pela arrogância elitista da cabeça de alguns juízes.
Além disso, nossos ministros das Supremas Cortes já expuseram na mídia de forma bastante clara o que entendem por ser um mundo caduco e atrasado: o pensamento conservador, a ideologia de direita –a qual alguns deles já afirmaram ser populista e perigosa– e a devoção religiosa. Em suma, boa parte da população.
Uma sociedade que optou por barrar no Congresso o PL 2.630 de 2020, que a resolução do TSE atropelou e ressuscitou. Um povo que, conforme mostrou recente pesquisa AtlasIntel, não concorda com a visão das Cortes e entende serem autoritárias suas mais recentes decisões.
Por fim, ministra, vale lembrar que o poema “Mãos dadas” de Drummond diz que o poeta não quer viver em um mundo caduco, mas, em seguida, diz “também não cantarei o mundo futuro”. Nisso, reside a grandeza do intelectual –não quer o mundo caduco, mas também não se acha com a verdade nas mãos, a ponto de a impor aos outros, passando por cima de tudo e todos.
As Cortes Supremas, ao atropelarem o Congresso, acreditando saber o que é melhor ao povo e ao país, recebem apoio de muitos tolos ingênuos e de muitos espertalhões interesseiros, que acreditam ser vantajoso aplaudir quem se diz na posse da chave do futuro. No entanto, nada mais caduco do que ouvir bajuladores e ignorar o povo.