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O que é a censura: para iniciantes e iniciados, por André Marsiglia

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Todo mundo precisa de um inimigo para chamar de seu. Quando o bolsonarismo e as altas Cortes de Brasília se puseram em confronto, as reações de ambos os lados foram agressivas. Se a agressão, no entanto, faz parte da política, não pode fazer parte do Judiciário. E, ao contrário do que as campanhas dos candidatos têm dito por aí, defender uma postura prudente dos ministros do STF e do TSE não torna ninguém bolsonarista ou de direita, assim como defender o excesso judicial não me parece ser uma pauta da esquerda, nem torna nosso país mais democrático.

A censura mora no excesso e na desproporcionalidade de decisões tomadas por magistrados imoderados. É uma bobagem acreditar que uma decisão não é censória apenas pelo singelo fato de estar escorada em uma norma legal. Tenho visto tamanha tolice em mensagens que circulam nas redes sociais dizendo: “proibir propagação de mentira não é censura, mas aplicação da lei”.

Primeiro, que se está tentando impedir a propagação das fake news e não da mentira. Não são sinônimos, mas isto vai ter de ficar para outro artigo. Segundo, que a censura não pode ser analisada apenas no plano normativo; precisa também ser examinada no plano fenomênico. A censura é um ato jurídico revestido de aparente legalidade, que se caracteriza pela abusividade empregada na interpretação e aplicação da norma. No caso da liberdade de expressão, por exemplo, é evidente que nem toda restrição é censura. No entanto, se diante da possibilidade de escolher um ato menos gravoso, o juiz escolhe o mais restritivo, pratica censura. Age dentro da lei, mas com uma aplicação desproporcional e excessiva, abrindo as portas para que sua decisão seja considerada um ato censório.

Na maior parte dos regimes ditatoriais há um sistema jurídico. A censura convive e dialoga com as normas. A ditadura militar brasileira se valeu deste expediente ao emitir os famigerados atos institucionais que tornaram operacional o regime de exceção no Brasil.  Naquela época, proibir um jornal de circular era aplicar a lei, no entanto era também censura, em razão da abusividade. A censura também não é um fenômeno datado. Há inúmeros exemplos recentes bastante gritantes. Talvez o mais conhecido, por inaugurar uma escalada autoritária das Cortes brasileiras, seja o da censura à revista Crusoé, em 2019, pelo Supremo Tribunal Federal, em razão da publicação da reportagem “O amigo do amigo de meu pai”, de Rodrigo Rangel e Mateus Coutinho.

Atuei como advogado da revista no caso e posso afirmar, com toda convicção, que até hoje o Judiciário não reconheceu ter se tratado de censura. Prefere dizer ter sido uma “medida cautelar”, prevista no poder geral de cautela de que são dotados os magistrados brasileiros. No mês passado, a decisão de um desembargador de Brasília impediu de circular uma reportagem do portal UOL sobre a compra de 51 imóveis pelo clã Bolsonaro, em dinheiro vivo. A decisão foi censória, mas a justificativa foi respaldada em dispositivo legal: a defesa da honra dos envolvidos e a necessidade de se assegurar a imparcialidade do pleito eleitoral. Com base em decisões escoradas em aparente legalidade, o Tribunal gaúcho censurou reportagem do Estadão, e o Tribunal Superior Eleitoral mais recentemente censurou o jornal Gazeta do Povo,s a Jovem Pan e O Antagonista por adjetivarem Lula ou mencionarem supostas ligações do candidato com governantes indigestos da América Latina.

Como se vê, a censura não é um ato ilegal, mas a aplicação abusiva de uma norma, o que leva à conclusão de que, para que se reconheça um ato de censura, são necessárias a percepção e o engajamento da sociedade na denúncia do ato censório. Para se perceber a censura e combatê-la, é vital que, passadas as eleições, as pessoas abaixem suas bandeiras partidárias, saiam de suas bolhas e barricadas ideológicas e cedam à tentação burra e simplista de politizar do jeito mais vulgar tudo que lhes chega aos olhos e ouvidos, sobremaneira conceitos jurídicos complexos e técnicos, sob pena de banalizarmos a censura, nos tornarmos insensíveis a ela, como temos nos tornado a tudo mais.

Publicado na revista Crusoé.