Quando o voto do ministro Salomão se fundamentou na metáfora do espelho
Há algumas semanas, capitaneado pelo ministro Luis Felipe Salomão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu incômodo acórdão a respeito da liberdade de imprensa.
A Corte reconheceu como lícitas ofensas e acusações perpetradas contra Mario Sabino, à época dos fatos, redator-chefe da Revista Veja, pertencente ao grupo Abril, que foi também o responsável pela defesa do jornalista nesse caso.
O assunto teve esperada repercussão, foi amplamente divulgado na imprensa e comentado por especialistas. No entanto, faltou-lhes a percepção de que o Acórdão propunha um esfíngico enigma, no melhor estilo “decifra-me ou te devoro”.
Do voto, com alguma ingenuidade, poderíamos concluir que foi definido que tudo o que se diz é válido ao debate, escorando-se, talvez, em entendimentos clássicos como o do constitucionalista Ronald Dworkin, para quem, em uma democracia, ninguém tem o direito de não ser ofendido.
Nessa toada, rumaríamos a uma inédita jurisprudência destinada à proteção absoluta do exercício das liberdades de expressão e de imprensa.
Não seria ruim.
Mas não nos esqueçamos do enigma.
Para sustentar que não se tratava de autorizar um vale-tudo, uma visão ampla e irrestrita acerca das liberdades, o voto do ministro Salomão se fundamentou em uma conhecida metáfora – a do espelho.
Não é uma novidade. Machado de Assis, Guimarães Rosa e muitos outros expoentes nacionais já nos brindaram com a metáfora em saborosos contos ficcionais.
Com igual criatividade, o ministro Salomão se juntou a este seleto grupo, afirmando que o profissional que exerce a atividade jornalística, ferino no exercício de suas funções, deve se conformar, calado, em receber os reflexos de suas tintas.
Dito de outra forma, deve provar de seu próprio veneno, lavando o STJ suas mãos diante dos fatos.
Eis a consequência do enigma que nos devora a todos: o STJ, conhecido como Tribunal da Cidadania, consignar que enxerga o jornalismo como uma atividade ofensiva em potencial.
Consignar ainda que jornalista é um indivíduo de segunda classe, que não merece a guarida do Judiciário, quando ofendido. Se ousar buscá-la, será visto como um censor, como alguém que não entende que a vida é assim mesmo, e que é dessa forma que funciona o jornalismo.
A vida não é assim mesmo, e também não é dessa forma que funciona o jornalismo. E não será o STJ a definir como deve funcionar o jornalismo, ou quem poderá se socorrer do Judiciário. Não tem uma Corte dessa grandeza esse direito – o de desacolher o jornalismo e o jornalista.
Poderá alguém dizer que o caso teve esse desfecho excêntrico em razão de ser Mario Sabino um jornalista que não se furta a incomodar os poderes da República.
Afinal, o ministro fez questão de citar criticamente em seu voto a atuação do jornalista à frente do site O Antagonista, que nada tem a ver com o processo: não consta nos autos, e não constava no mundo, quando da ocorrência dos fatos debatidos no STJ.
Além disso, Sabino já foi colocado por duas vezes à frente de delegados da Polícia Federal, em razão unicamente de ser jornalista e de ter feito seu trabalho. No primeiro ano da Revista Crusoé, da qual é publisher, também editou a capa que acabou censurada a mando de uma dupla de ministros da mais alta Corte de nosso país – o Supremo Tribunal Federal (STF).
Mas será lamentável se, ao contrário do tão bem recomendado pelo jurista belga François Ost, um julgamento desse porte tiver deixado de apontar para o futuro, de reconhecer que a natureza contundente e questionadora do jornalismo é a razão pela qual foi criado, e mantido, a muito custo, até aqui, de pé.
Na resposta que os poderes da República dão aos questionamentos contundentes da imprensa nossas instituições são colocadas à prova. Nesse espelho, e em nenhum outro, podemos ver refletido se nossa cambaia democracia está funcionando, ou não.
Artigo publicado no JOTA.