Recentemente uma entidade representativa de mulheres advogadas teve publicada nota na Folha de S.Paulo repudiando uma reportagem que selecionou apenas homens do Direito para falar sobre home office. A conduta do jornal foi chamada de censura. Não é um fato isolado.
Quando a Globo ouviu políticos sobre manifestações autoritárias de Bolsonaro e seu clã, e optou por não ouvir Lula, a emissora foi igualmente acusada.
Alcunhar de censura escolhas editoriais, ou mesmo as repudiar, poderia ser apenas mais um pitoresco número do picadeiro delirante de nossa democracia, mas a recorrência pede melhor análise.
As liberdades de expressão e imprensa, previstas nos artigos 220 e quinto da Constituição Federal, não podem ser interpretadas sem a presença dos incisos IV e VI do referido artigo quinto, que asseguram à expressão as necessárias liberdades de pensamento e de consciência.
Ou seja, a imprensa se expressar livremente não significa apenas que a uma publicação deva ser permitida a luz do debate público. Durante a censura do regime militar, muitos jornais circulavam, havia apresentações teatrais, shows. A expressão era permitida, proibida estava, no entanto, a liberdade de escolha do que expressar.
Se interesses comerciais, políticos, ideológicos, legítimos ou não, pouco importa, pretenderem normatizar, impondo determinada razão política ao comportamento de quem emite uma visão de mundo, o conteúdo publicado será o exercício de um direito constitucional viciado. E, então, não será nada.
A liberdade é fundamento primeiro do Direito, pois é a possibilidade de se determinar por qualquer escolha, pelo bem ou pelo mal, pelo erro ou pelo acerto. A razão política com que se pretendeu, nos casos relatados, normatizar o comportamento do pensamento, exclui a Liberdade, é oposta ao Direito.
Somente quem é livre para fazer escolhas pode exercer a expressão integralmente. A escolha é consequência da liberdade, a renúncia é consequência da escolha, e os preteridos pela escolha são consequência da renúncia, e, portanto, acessórios reflexos do exercício pleno do direito à expressão livre; jamais suas vítimas. Até porque seria um contrassenso pensar que o exercício pleno de um direito gera vítimas.
Qualquer dos preteridos que almejar para si o protagonismo estará fazendo política com o direito, manipulando o conceito mais importante de nossa Constituição democrática.
No último feriado do trabalhador, a Globo cedeu e decidiu ouvir Lula. No último domingo, a Folha de S.Paulo se retratou por suas escolhas editoriais. Perderam os veículos de comunicação uma grande chance de sustentar as suas escolhas como imperativo do jogo democrático. Perderam também os preteridos, pois a retratação não instala o debate, apenas joga um perfume no ar, deixa a sensação de ambiente higienizado. E nenhum debate consistente sobrevive a higienizações.
Perdemos, por fim, todos nós de assistir aos jornalistas envolvidos defenderem seu próprio mister, acolhendo o mais íntimo e último habitat das liberdades de expressão e de imprensa, sua origem e refúgio: a livre escolha.
Não vivem liberdades de expressão e de imprensa onde há hesitação. Apenas a repressão acha sua expressão na antítese. Ser visto o exercício das liberdades de expressão e de imprensa como censura é mais um agônico latido de cachorro abandonado de nossos valores democráticos.
Sobre o autor: André Marsiglia Santos é advogado especializado em liberdades de expressão e de imprensa. Membro da comissão de liberdade de imprensa da OAB-SP, e da comissão de mídia e entretenimento do IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo). Idealizador da L +: Speech and Press e sócio da Lourival J Santos Advogados.
Artigo publicado originalmente em Portal Imprensa.