Na última semana, a China reportou o primeiro crime ligado ao uso de Chat GPT no mundo. Segundo reportagem de Caio Mattos, aqui na Crusoé, repercutindo o jornal South China Morning Post, um homem teria se valido da inteligência artificial para criar fake news, juntando pedaços de notícias verdadeiras viralizadas para espalhar conteúdos falsos que tivessem apelo popular.
Era óbvio que o Chat GPT seria utilizado para finalidades criminosas. A criatividade para o bem sempre chega com mais vagar à cabeça humana. No entanto, acende-se a luz amarela em países que combatem fake news sem estratégia nenhuma, como o Brasil. Em breve, nosso Judiciário e as big techs que, por imposição do PL 2630/20, passarão a funcionar como polícia de conteúdo de seus usuários, se verão às voltas com um ridículo, custoso e quixotesco combate contra robôs, relegando a segundo plano o que mais importa: quem está por trás deles.
Isso me faz lembrar a piada de um ventríloquo que, durante o espetáculo, pela boca do boneco, começa a xingar a plateia. Um dos exaltados espectadores dirige-se aos berros ao palco. O manipulador, constrangido, desculpa-se, e ouve do homem: “Cale a boca que estou falando com o boneco”.
Sempre defendi que fossem considerados fake news apenas conteúdos intencionalmente fraudulentos. Os supostamente inverídicos, sem comprovada intenção dolosa, não devem ser tidos como ilícitos. Assim, puniríamos a conduta humana de fraudar o debate público, no lugar de conversarmos com o boneco de ventríloquo e promovermos uma guerra ridícula do Estado contra robôs. Todos podemos de alguma forma inocente promover fake news, já que a essência do ilícito não está na inevitável existência de conteúdos inverídicos no mundo, mas na conduta de quem gera tais conteúdos de propósito. Se não entendermos esse ponto, o Estado brasileiro corre um sério risco de se transformar na pessoa da piada.
Nosso Judiciário não tem se armado de forma estratégica e tampouco o faz o PL 2630/20, alcunhado como das fake news. O projeto delega do Judiciário às plataformas um papel de vigilante dos conteúdos das redes sociais, removendo-os ou deixando de os distribuir sempre que considerados ilícitos ou inverídicos, preocupando-se com o efeito social da existência do conteúdo, e não com a conduta humana por trás deles. Enquanto mirarmos em um enfrentamento desse tipo às fake news, estaremos nos preparando para combater robôs. Enquanto acreditarmos que a burocracia, e não a inteligência, deve ser o caminho, brigaremos com bonecos de ventríloquo.
E não pense, caro leitor, que nosso Estado age desta forma por burrice. Alguns atores políticos, talvez, mas a maior parte de nossos agentes públicos sabe muito bem que uma guerra contra toda e qualquer informação potencialmente danosa resulta em uma confusão inútil, em um eterno enxugar gelo que, no entanto, propicia ao Judiciário inquéritos abertos sob sigilo ad infinitum, ao Executivo, a possibilidade de escolher a dedo alvos para promover perseguições e, finalmente, ao Congresso, que troque favores convenientes com os dois outros poderes para não acabar com a festa, fingindo-se de morto. Ou melhor, dando uma de vivo, de bem vivo.
s.
Publicado na revista Crusoé.