A censura no mundo moderno não se dá mais às escondidas. Ninguém invade redações na surdina da noite com cassetetes. Ela é praticada à luz da legalidade e, na maior parte das vezes, utiliza o próprio sistema jurídico para silenciar ou inibir a expressão do outro. O denuncismo é uma espécie de censura que está na modinha. Vale-se da prática legal da denúncia e do sistema jurídico vigente para calar ou inibir a expressão alheia.
A prática é eficiente. Se alguém alega que o denunciante está agindo de forma abusiva, basta dizer: “Eu? Imagina, apenas denunciei, não há nada errado nisso“. A aparência é legal, a intenção é imoral e termina por degenerar a finalidade jurídica da denúncia. O fenômeno surgiu forte no Brasil após o 8 de janeiro, quando o Ministério da Justiça chegou a receber mais de 86 mil denúncias sobre pessoas supostamente ligadas aos atos.
Bastava um pouco de bom senso para saber que nem sequer caberia tanta gente na praça dos Três Poderes, no entanto, como era de interesse político do governo enfrentar opositores bolsonaristas, o Ministério se esmerou em criar mais e mais mecanismos para receber as denúncias, no lugar de simplesmente reconhecer que havia um exagero e sossegar o facho. A coisa foi tão escancarada que despertou a atenção do jornal Le Monde, por haver no ocorrido um “radicalismo contra radicalismo”. Na ocasião, fui entrevistado pelo periódico francês e reforcei que a prática se avizinhava da vingança e que era uma forma enviesada de manipular as instituições – ou das instituições se deixarem manipular – para a prática de atos censórios.
Nas redes sociais, o fenômeno é conhecido. Quem anda por lá sabe bem que, muitas vezes, uma conta é suspensa ou banida pelas plataformas não em decorrência do conteúdo publicado, mas da existência de um volume imenso de denúncias orquestradas em massa por robôs, influenciadores digitais, políticos ou celebridades. Uma prática, nesse sentido, muito semelhante à do chamado cancelamento, como muito bem delineado por Madeleine Lackso, em seu recente livro Cancelando o cancelamento.
No entanto, recentemente, o denuncismo parece ter dado um passo além, figurando no ecossistema dos inquéritos sigilosos do Supremo Tribunal Federal (STF). Ocorre que os inquéritos têm sido utilizados como depósito de denúncias de toda sorte, especialmente de parlamentares contra seus próprios pares, mas de ideologia e partido adversários. Como todos conhecem bem o rigor excessivo com que o ministro Alexandre de Moraes vem conduzindo as investigações, havendo novas pessoas investigadas dia sim e outro também e ampliando a competência dos inquéritos a toda e qualquer coisa que ocorra no planeta Terra, causa preocupação que os inquéritos passem a ser utilizados por parlamentares para constranger ou silenciar o outro, valendo-se da prática do denuncismo.
Não esperamos dos parlamentares que denunciem coleguinhas que se expressam; esperamos é que se expressem. Não esperamos de ministros do STF que permitam que os inquéritos sejam usados para finalidade política por parlamentares ou quem quer que seja. Já basta termos de lidar com as irregularidades jurídicas das investigações. É o suficiente, estão de bom tamanho.
Publicado na revista Crusoé.