Por advogar há muitos anos ao lado de jornalistas na defesa das Liberdades de expressão e de Imprensa, costumo, nessa época, esboçar uma análise a respeito do comportamento do ano que se foi no que importa ao tema. Geralmente pinço, para tornar menos árida a leitura, exemplos (que a cada ano ficam mais abundantes e complexos), e tento mostrar aos leitores que, se não estamos sob censura, estamos ainda bastante longe de podermos nos considerar livres.
No Brasil, a censura sempre foi adocicada por eufemismos, e as liberdades de expressão e de imprensa sempre foram surradas por gestos doces. Comum em debates se perguntar: “qual o limite das liberdades de expressão e de Imprensa?” Comum no judiciário se asseverar: “liberdades precisam ser exercidas com responsabilidade”. Incomum, no entanto, a discussão sobre os paradoxos de se chamar por liberdade o que tem limite, ou de se entender por protegidas as expressões que incluem apenas falas responsáveis, ao olhar de um sisudo magistrado.
Quando o Pasquim conseguiu se livrar dos censores que ficavam nas redações, Millôr Fernandes escreveu uma crônica ótima contando que o responsável pela censura, por vício de ofício, havia deixado ao sair um sutil aviso: “agora, a responsabilidade é de vocês”. Além, claro, da ameaça, havia na mensagem um conteúdo claramente autoritário e paternalista, afinal, a responsabilidade nunca havia deixado de ser deles.
Sempre estivemos em meio ao exercício de “liberdades moderadas”, e de “censuras razoáveis”. Paradoxos que, no Brasil, soam naturais.
Recentemente, no episódio de censura ao humorístico “Porta dos Fundos”, que fez piada com um Jesus homossexual, certo desembargador do Tribunal carioca decidiu que o conteúdo fosse retirado do ar para que, segundo ele, os ânimos se acalmassem. Lamentei a censura, pois interromperia a saudável celeuma entre os que achavam certo e os que achavam errado o humor do grupo, tornando a defesa do humorístico a defesa do próprio caráter civilizatório da Constituição.
Qual não foi minha surpresa quando li dias depois o artigo de um professor que afirmava não ter havido censura no caso. A tese era a seguinte: se o judiciário pode corrigir o ato, censura não é. Ou seja, se um juiz escrever em sua sentença: “determino a censura ao artigo da revista tal e a prisão do autor em um calabouço frio e escuro, porque assim o desejo”, para o autor, não se trata de censura, porque o sistema pode corrigir o ato. Se um jornalista fosse espancado por fazer uma pergunta, seria possível dizer que não se trata de censura, pois há tipificação penal capaz de fazer o espancador responder pelo crime.
Nessa mesma toada, não seria censura o lamentável caso Crusoé, ocorrido no mês de abril, no qual atuei diretamente, ou o impedimento à publicação de livros, biografias, histórias em quadrinhos com beijos, peças teatrais, discursos acadêmicos e protestos universitários, havidos durante todo o curso do ano, e nos quais fui exigido incessantemente como advogado, sempre sob aflição e desamparo democrático dos envolvidos.
Os conceitos de censura e de liberdade de expressão são camaleônicos, e relativizáveis no Brasil, o que traduz minha afirmação inicial de que entra ano e sai ano, embora não estejamos sob censura, estamos longe de podermos nos considerar livres.
Mesmo sem os censores presentes nas redações ou a censura deitada na varanda de nosso texto, há ainda a ameaça, velada ou não, o receio, expresso ou não, e, sem dúvida, a indigesta insegurança, que não está visível mas habita o cotidiano de quem, por profissão ou masoquismo, faz uso das liberdades de expressão e de Imprensa nesse país.
Artigo publicado originalmente no Portal Imprensa.