Logo no início das discussões sobre o Projeto de Lei 2630/2020, alcunhado como das fake news e, mais recentemente, chamado de “PL da Censura”, participei de uma das audiências públicas no Congresso a respeito do tema. Não havia uma definição razoável para o conceito de fake news, não havia sequer uma definição razoável para o que deveria ser o conteúdo jornalístico-informativo que as plataformas, pela lei, deveriam remunerar. Passaram-se anos, leio agora o texto do projeto e noto que as dúvidas de antes estão todas lá ainda. As definições são vagas, as dubiedades são muitas, as brechas são várias. O projeto andou, portanto, não por estar maduro, mas por ter o Congresso sofrido pressão.
Não vou me enfileirar ao lado dos que acreditam que qualquer regulação da liberdade de expressão nas redes sociais seja censória. Nenhuma lei é ruim em si, sempre há pontos passíveis de serem regulados e, para isso, a caneta legislativa é muito mais bem-vinda do que a criatividade judicial. No entanto, se uma lei vem à luz sem o devido debate, sem uma estruturação adequada dos conceitos jurídicos nela contidos, as brechas no texto serão inevitáveis e a lei causará mais mal existindo do que deixando de existir. Uma lei imatura e pouco ou mal discutida, além de potencialmente censória, torra à toa dinheiro público e causa confusão no debate público.
O PL 2630/2020 cria órgãos, define funções, prevê remuneração de conteúdo, faz o diabo, mas, ao mesmo tempo, deixa de dizer como isso tudo será feito na prática. Não é um projeto pronto, fechado, muito há ainda a ser feito antes que seja aprovado. As propostas do Tribunal Superior Eleitoral entregues na última terça-feira ao legislativo pelo ministro Alexandre de Moraes são um bom exemplo disso. Não apenas há no texto dubiedades e brechas, como carrega consigo boa parte do que durante as eleições o TSE decidiu a respeito de controle de conteúdo nas redes sociais, sob a perspectiva de que, como se tratava de decisões controversas, potencialmente censórias, seriam aplicáveis apenas àquele momento eleitoral conturbado. Agora, as exceções de outrora surgem na proposta como regra e, sob chicote de multas pesadas impostas às plataformas que, na prática, funcionariam como uma espécie de polícia privada dos Tribunais.
É um grande erro. Regular mídias mundo afora passa longe de ser o que aqui se pretende. Nos países civilizados, regular não significa o Estado ou as plataformas (big techs) controlarem os conteúdos de seus usuários para além dos limites das própria Constituição, mas obrigar as plataformas a exporem seus critérios de gerenciamento deste conteúdo, aclarando de que forma criam e desfazem bolhas de afinidades, de que forma impulsionam e desestimulam a seu bel-prazer determinados grupos de interesses políticos ou ideológicos. A regulação correta, portanto, é a destinada às plataformas, não aos usuários, cobrando delas transparência e impondo obrigações no atacado, não no varejo. Ou seja, a preocupação da lei deve ser fiscalizar como as plataformas possivelmente manipulam a distribuição dos conteúdos aos usuários leitores, e não colocá-las como combatentes das bobagens escritas pelos usuários.
O combate no varejo, como pretendido no Brasil, além de inútil e potencialmente censório, responde menos à necessidade de criarmos instrumentos jurídicos capazes de dialogar com a tecnologia das redes sociais, e mais ao medo aterrador que hoje temos do que o outro pensa, do que o outro é. É preciso um pouco de coragem para viver em uma democracia madura que conviva harmonicamente com a liberdade de expressão. Projetos legislativos e decisões judiciais que respondam apenas ao medo das pessoas autorizam sempre posturas autoritárias e censórias por parte do Estado.
Publicado na revista Crusoé.