No dia seguinte ninguém morreu. Assim inicia o livro de Saramago “Intermitências da morte”, no qual fabula a suspensão da finitude por sete meses, ocasionando um tremendo desastre à organização da vida que apenas a morte, por mais paradoxal que pareça, proporciona.
No Brasil, soa cada vez mais familiar uma ideia de ordem aliada à oclusão da liberdade de imprensa, ordem encarnada em discursos autoritários e desatentos da organização democrática que apenas as dissonâncias proporcionadas pelo pensamento livre podem causar.
Diferentemente de Saramago, que ao incômodo do término da vida propôs a suspensão de meros sete meses, algumas autoridades públicas parecem cada vez mais à beira de pretender à liberdade de imprensa uma suspensão maior.
No outono passado, o Supremo Tribunal Federal rompeu para nunca mais o cordão umbilical da legalidade do inquérito 4781, chamado das fake news, com a censura imposta à Crusoé. Na época, a publicação se viu obrigada a tornar indisponível matéria jornalística de interesse público que revelava inconvenientes interesses privados de integrante da corte.
As irregularidades do inquérito e a inequivocidade da censura foram tão desbragadas que, desde o primeiro momento, ficou evidente que seriam necessárias algumas tantas e boas pirotecnias para que o STF se restabelecesse do embaraço que criou para si próprio.
Os erros procedimentais foram tratados com o salto triplo da interpretação – como dizia Putnam, quando a teoria entra em conflito com o fato, é quase irresistível desistir do fato – e o inquérito foi mantido.
Já a censura foi polidamente suavizada com a ordem recente para que fossem retiradas do bojo da investigação matérias de cunho informativo.
Foi o bastante para o STF receber aplausos de experientes juristas, que deduziram que às liberdades basta um gesto, um afago. Ledo engano. As liberdades de expressão e de imprensa se sustentam na coragem do enfrentamento árido e diário dos mais variados tipos de censura.
Como resultado, tem-se visto, no âmbito do mesmo inquérito, uma série de investigações e diligências pueris, que, até o momento, pouco ou nada apurou, mas muito mostrou da difícil convivência que algumas autoridades possuem com a divergência.
Nessa esteira, há poucas semanas, e pouco mais de um ano após o episódio em que foi censurada, a Crusoé denunciou estar sendo novamente investigada, no mesmo inquérito, por permitir a livre manifestação de seus leitores no espaço a eles reservado na caixa de comentários da publicação.
A tradicional seção do leitor, espaço mantido por todos os veículos jornalísticos para que seu público opine sobre os fatos publicados, passava agora, por mais absurdo que seja, a ser alvo de investigação da Procuradoria-Geral da República, com o aval do STF.
Não sendo o bastante, na última semana, a publicação seguiu sendo alvejada, dessa vez com uma decisão liminar do judiciário de Brasília, obtida pela deputada Bia Kicis, impondo que, em determinada reportagem veiculada pela revista, o nome dela fosse tarjado de preto, como era comum nos tempos insólitos da ditadura militar.
A investigação sem pé nem cabeça da PGR, espera-se, não prosperará. O Marco Civil da Internet é explícito ao isentar os veículos de comunicação de responsabilidade pela manifestação de leitores, e a Constituição Federal, muito antes da imprensa, já garantia como princípio democrático a livre expressão de quem quer que seja.
Também é esperado que a decisão constrangedora a favor da deputada seja cassada brevemente em segunda instância. No entanto, dessas investidas, ficam as feridas.
E a facilidade com que veículos de comunicação se tornam, sem nenhum esforço, vítimas de ataques ferozes de autoridades e instituições públicas importantes demonstra o grau de insegurança com que a liberdade de imprensa é atualmente exercida no país.
A consequência de não se enfrentar a censura com vigor, escancarando-a, faz brotar o próximo abuso, torna confortável ao abusador o exercício indevido de seu poder. A liberdade não tem dono. Somente ela pode se dizer dona de si. Ou essa é uma premissa constitucional, ou nossa Constituição não é nada.
Publicado na revista Crusoé.